24 de jan. de 2021

George Soros para além das Teorias da Conspiração

A primeira coisa que os liberais precisam saber sobre George Soros, e que talvez seja uma surpresa para muitos, é que ele foi inspirado pelas ideias liberais. Acho que ele se desvirtuou demais do liberalismo, mesmo daqueles que ele próprio considera seus mestres, para ser chamado de liberal, mas a origem de suas ideias remonta ao liberalismo.

Vou começar falando de suas virtudes, já que sua face negativa já foi exposta e até exagerada pelos conspiracionistas. George Soros é um aluno da London School of Economics, local por onde andou outros ilustres "liberais sociais" como Karl Popper, Ernest Gellner e José Guilherme Merquior. Seu principal mestre foi Karl Popper, tanto que o nome da sua fundação, a Open Society Foundation, é uma homenagem às ideias defendidas por Popper no livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos.

No livro, Karl Popper critica o marxismo, denuncia seu caráter totalitário e explica que tanto o comunismo quanto o nazi-fascismo se tornaram totalitários, ou seja, sociedades "fechadas", porque se basearam totalmente numa verdade absoluta que não era contestada jamais. Todo o sistema portanto dependia daquela verdade absoluta. Uma sociedade aberta por outro lado, é aquela que não acredita em verdades absolutas e que portanto, está aberta à transformação e ao aperfeiçoamento de suas instituições.

Assim, como bom discípulo de Popper, e como alguém que experimentou tanto o totalitarismo comunista quanto o nazista enquanto viveu na Hungria, George Soros é um ferrenho anticomunista. Como tal, ele contribuiu de forma crucial, com grandes somas em dinheiro, para movimentos anticomunistas no Leste Europeu como o Solidariedade na Polônia e o Carta 77 na antiga Checoslováquia.

Soros também tem duas ideias principais que fazem sentido, na minha opinião, mas apenas até certo ponto. A primeira e mais marcante de sua forma de pensar é a "Reflexividade". Basicamente, é a ideia de que, em ciências sociais, não é possível separar o observador do objeto observado. Dessa forma, as ideias que temos sobre como a sociedade funciona, acabam influenciando sobre o modo como a sociedade de fato vai funcionar, já que estamos inseridos na sociedade. Trata-se portanto, de uma via de mão dupla, por isso o nome "Reflexividade". As ciências sociais não permitem que se isole um fenômeno para observá-lo de fora, como acontece nas ciências naturais.

Segundo Soros, a aplicação desse princípio à economia, e à formação de preços de ativos no mercado financeiro, foi o que o tornou bem sucedido nos negócios, até se tornar um dos homens mais ricos do mundo. 

Como isso se aplica ao mercado? Posso dar somente um exemplo simples, já que minha compreensão do princípio é um pouco limitada: Alguém que não conhece ou não acredita na Lei de Oferta e Demanda, não pode se basear na Lei de Oferta e Demanda para estabelecer os preços de seus produtos e serviços, certo? Logo, muita gente se baseia nos mais diversos critérios, alguns até irracionais, para definir os preços daquilo que querem vender. É uma ideia que faz até muito sentido e não me resta dúvidas da importância desse fator para entender o funcionamento do mercado, contudo, na minha humilde opinião, George Soros extrapolou demais a importância da reflexividade ao usá-la para relativizar as Leis de Mercado. A Lei de Oferta e Demanda acaba se impondo, mesmo quando ela é ignorada. Alguém que, ignorando as Leis de Mercado, define um preço muito alto em relação à demanda, para a sua mercadoria, verá suas vendas caírem e seus estoques encalharem. Da mesma forma, aquele que fixa um preço muito baixo, é prejudicado na medida em que deixa de lucrar tanto quanto poderia se tentasse se aproximar mais do preço de mercado. Com o tempo, a competição então acabaria selecionando aqueles que mais se aproximaram dos preços de mercado e eliminando aqueles que mais se afastaram.

Claro, talvez a ideia de reflexividade faça mais sentido quando aplicada especificamente ao mercado financeiro, e talvez o exemplo do comércio de mercadorias comuns que usei não fosse o que ele tinha em mente, mas é curioso que Soros, sendo um especulador, se considere bem sucedido por se basear num critério racional (a reflexividade), ao mesmo tempo que trata os demais especuladores como meros apostadores irracionais. Resumindo, ele se considera o único especulador esperto do mundo, todos os demais são apostadores inconsequentes que colocam em jogo suas fortunas, deixando-se levar por emoções do momento. O inferno são os outros.

A segunda ideia de Soros da qual quero falar com mais ênfase, e que na minha opinião é uma meia verdade, é a de que o livre mercado pode se tornar uma ameaça à sociedade aberta. Mesmo na visão de Soros, nem de longe se trata de uma ameaça tão perigosa quanto o marxismo e o nazi-fascismo obviamente, até porque o livre mercado é uma tentativa de criar uma sociedade mais livre além de ser totalmente compatível com outras liberdades.

O perigo está, e nesse ponto eu concordo com Soros em partes, na possibilidade de que a Lei de Mercado se torne a verdade absoluta das sociedades capitalistas e democráticas do ocidente, o que as transformariam em sociedades fechadas. Tanto o marxismo quanto o nazi-fascismo se baseavam em ideias pseudocientíficas. Da mesma forma, as leis econômicas só podem ser consideradas "científicas" com muita generosidade. Não se pode dar aos axiomas das ciências econômicas e sociais, o mesmo grau de confiança que têm as verdades descobertas pelas ciências exatas sendo que nem mesmo estas são verdades absolutas. Nesse sentido, as "Leis de Mercado" correm o risco de se tornarem a pseudociência que, uma vez transformada em dogma, transformaria as sociedades capitalistas em sociedades fechadas.

Concordo que uma sociedade aberta não pode aceitar verdades absolutas e que nem mesmo as leis de mercado podem ser tratadas como tais. Essa era a ideia inicial de Karl Popper, e minha concordância com Soros termina aí. O medo de que estas leis se cristalizem em dogmas é porém, na minha opinião, completamente infundado. 

Primeiro porque as ciências econômicas estão, o tempo todo, questionando as leis de mercado, pondo-as à prova, procurando entender seus limites e aplicações práticas, buscando conhecer os demais fatores que afetam a realidade para além dos já conhecidos e enfim, aperfeiçoando o entendimento que temos sobre o funcionamento da economia. As leis de mercado não correm o menor risco de se tornarem dogmas.

Em segundo lugar, não é por medo de que uma verdade se transforme em dogma, que vamos rejeitá-la. Devemos rejeitar uma tese convincente somente quando sua antítese se torna ainda mais convincente, caso contrário, mantemos nossa aceitação do entendimento vigente. E eu, mesmo admitindo meu conhecimento estreito e muito limitado, continuo achando que o funcionamento da economia tal como descrito pelos grandes luminares modernos do liberalismo econômico como Hayek e Friedman, ainda é a explicação mais convincente.

E por fim, numa democracia, para o bem ou para o mal, é sempre possível mudar a direção de uma sociedade. Por isso é muito improvável que democracias se tornem sociedades fechadas. A qualquer momento, um líder cético quanto às leis de mercado, pode ser eleito. É um risco real nesse exato momento, nos Estados Unidos por exemplo, com a candidatura de Bernie Sanders. Uma democracia tem dessas coisas, portanto é praticamente impossível que o livre mercado se torne a base inquestionável das democracias ocidentais.

Bom, parece que um artigo que tinha a intenção de desconstruir a imagem demonizada de George Soros que os conspiracionistas criaram, acabou tratando suas ideias de forma predominantemente negativa. Mas enfatizando seu lado positivo, tentei mostrar que ele não é nenhum esquerdista radical como muitos imaginam, que deu sua contribuição crucial para a derrubada do comunismo no leste europeu, que suas ideias foram inspiradas nas ideias liberais e que fazem sentido até certo ponto, mas não são convincentes o suficiente para me fazer abandonar minhas convicções no livre mercado. Sigo sendo aquilo que outro liberal social, o italiano Benedetto Croce, chamou de "liberista": Um tipo específico de liberal que acredita tanto nas liberdades civis, nas liberdades democráticas e no ideal de sociedade aberta quanto no livre mercado.

Para finalizar, talvez decepcionando alguns leitores, terei que me abster de falar do apoio de Soros aos movimentos "progressistas", como o movimento negro, LGBT e o feminismo, porque simplesmente não tenho a menor ideia do que ele espera com isso, de quais são suas intenções e quais ideias estão por trás disso tudo. Sabendo porém que ele é um antimarxista, acho que podemos excluir a hipótese de que ele esteja tentando instigar a luta de classes ou que esteja trabalhando para o marxismo cultural, a menos que ele não esteja sendo sincero quanto aos seus ideais, mas essa é uma possibilidade que eu prefiro excluir. Acho que um debate razoável começa com a presunção de que todos estão sendo sinceros.

Contudo, esse é outro motivo que me leva a afirmar que Soros se desviou demais das ideias liberais. Karl Popper acreditava na importância das instituições, no processo lento e gradual de evolução pelo qual estas instituições passaram e portanto, reconhecia a importância da tradição, rejeitava as utopias e a arrogância intelectual dos pretensos reformadores da sociedade, por isso, acho que os projetos megalomaníacos de engenharia social de George Soros sofrem de muitos dos vícios que seu mestre certamente condenaria.

É incoerente que anti-socialistas acreditem em Teorias da Conspiração

Por que o socialismo não funciona?

Segundo Hayek, porque é impossível reunir toda a informação necessária para controlar um sistema tão complexo quanto a economia de um país inteiro. Há sempre inúmeras variáveis que fogem do controle dos planejadores centrais. Este foi o principal e mais influente argumento de Hayek contra o socialismo, apresentado ao mundo em um de seus mais importantes textos: O Uso do Conhecimento na Sociedade.

Resumindo então, o socialismo não funciona porque é impossível controlar coisas muito complexas.

Conspirações tendem a falhar pelo mesmo motivo, por isso eu me espanto com a quantidade de conservadores que usam os argumentos de Hayek quando o assunto é socialismo, que acreditam que um pequeno grupo de pessoas consegue controlar países, governos, veículos de mídia, universidades e as mais diversas instituições e ainda de forma discreta, sem que ninguém perceba.

Karl Popper, que teve uma boa influência de Hayek, explica isso melhor em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos:

"Não quero sugerir que as conspirações nunca acontecem. Pelo contrário, são fenômenos sociais típicos. Elas se tornam importantes, por exemplo, sempre que pessoas que acreditam na teoria da conspiração entram no poder. E as pessoas que sinceramente acreditam que sabem como construir o paraíso na terra provavelmente adotarão a teoria da conspiração e se envolverão em uma contra-conspiração contra conspiradores inexistentes. Pois a única explicação de seu fracasso em produzir seu paraíso é a intenção maligna do Diabo, que tem interesse no inferno.

Conspirações ocorrem, isso deve ser admitido. Mas o fato surpreendente que, apesar de suas ocorrências, refuta a teoria da conspiração é que poucas dessas conspirações são bem sucedidas. Conspiradores raramente consumam sua conspiração.

Por que isto é assim? Por que as conquistas diferem tão amplamente das aspirações? Porque este é geralmente o caso na vida social, conspiração ou não conspiração. A vida social não é apenas uma prova de força entre grupos opostos: é a ação dentro de uma estrutura mais ou menos resiliente ou frágil de instituições e tradições, e cria - à parte de qualquer contra-ação consciente - muitas reações imprevistas nesse contexto, algumas delas talvez até imprevisíveis.

Uma das ações econômicas mais primitivas pode servir de exemplo para tornar bem clara a ideia de consequências não intencionais de nossas ações. Se um homem deseja urgentemente comprar uma casa, podemos seguramente assumir que ele não deseja aumentar o preço de mercado das casas. Mas o próprio fato de ele aparecer no mercado como comprador tenderá a elevar os preços do mercado. E observações análogas valem para o vendedor. Ou, para dar um exemplo de um campo muito diferente, se um homem decidir segurar sua vida, é improvável que ele tenha a intenção de encorajar algumas pessoas a investir seu dinheiro em ações de seguro. Mas ele fará isso mesmo assim. Vemos aqui claramente que nem todas as consequências de nossas ações são consequências intencionais; e, consequentemente, que a teoria da conspiração da sociedade não pode ser verdadeira porque equivale à afirmação de que todos os resultados, mesmo aqueles que à primeira vista não parecem ser intencionados por ninguém, são os resultados pretendidos das ações das pessoas que estão interessadas nesses resultados."

Resumindo a explicação de Popper, grandes conspirações tendem a não funcionar pelo mesmo motivo que o socialismo não funciona: porque é impossível ter controle sobre coisas muito complexas. Quando você tenta controlar coisas muito complexas, é comum que surjam consequências não-intencionais e que as coisas acabem fugindo do seu controle.

Como Vernon Smith provou a Lei de Oferta e Demanda em laboratório

O modelo de equilíbrio entre oferta e demanda, tão amplamente aceito pelos economistas ortodoxos, realmente funciona na prática? Vernon Smith acreditava que não, até que em 1956, ele tentou fazer experiências em laboratório para ter certeza e os resultados o deixaram surpreso.

Os primeiros experimentos eram muito simples, ele deu a um grupo de estudantes, chamados de compradores, cartões que lhes diziam o valor que eles davam a um bem, o máximo que eles estariam dispostos a pagar pelo bem.

Ele então fez o mesmo para os vendedores, dando-lhes cartões que diziam seus custos, o preço mínimo pelo qual eles estariam dispostos a vender o bem.

Como Smith sabia os valores dos cartões que ele distribuiu, ele poderia calcular as curvas de oferta e demanda, além de prever o preço e a quantidade de equilíbrio. Então Smith deixou que os estudantes fizessem trocas em um leilão duplo em voz alta. Eles gritavam: "Eu vendo por $2!", "Eu compro por $1!" e assim por diante. Sempre que dois alunos concordassem com o negócio, o preço seria anunciado: "Vendido ao preço de $1,50!".

Se um vendedor com um cartão (que marcava o seu custo) de $0,75, por exemplo, aceitasse fechar negócio ao valor de $1 com um comprador que possuía um cartão de, por exemplo, $2,25 (o comprador poderia pagar qualquer valor abaixo desse), ele ganharia (em dinheiro de verdade) o valor pelo qual o negócio foi fechado ($1), menos o valor do seu cartão (que lembrando, representava seus custos), nesse caso, ele ganharia $0,25. Enquanto que o comprador ganharia o valor do seu cartão menos o valor ao qual a compra foi fechada, nesse caso, ele ganharia $1,25, que é o valor que ele conseguiu "economizar" em relação ao máximo que ele estava disposto a pagar.

Pagando os lucros com dinheiro de verdade, ele estimulava os estudantes a tomarem decisões da mesma forma que tomariam no mundo real.

E o que aconteceu? Os modelos teóricos de equilíbrio entre oferta e demanda diziam exatamente quantas vendas seriam feitas e por quais valores; e os resultados da experiência comprovaram as previsões com precisão surpreendente.

Por conta de seus experimentos, Vernon Smith se tornou pioneiro em economia experimental e ganhou o prêmio Nobel de economia de 2002.


Leia mais em:

Notícia de 2002 sobre o prêmio Nobel para Vernon Smith

Artigo em Espanhol sobre Vernon Smith

A vez em que um professor de exatas trollou uma revista acadêmica de humanas

O caso Sokal (ou escândalo Sokal) foi um escândalo ocorrido no meio acadêmico durante a segunda metade da década de 1990. O caso eclodiu em 1996, quando o físico Alan Sokal publicou um artigo-embuste na revista Social Text (publicada pela Duke University Press), publicação de estudos culturais até então conhecida por seu caráter “pós-moderno”.

Professor de Física na Universidade de Nova Iorque, Sokal submeteu o artigo à publicação como um experimento para ver se um jornal desse tipo iria “publicar um artigo generosamente temperado com nonsense se (a) o artigo soasse bem e (b) o artigo exaltasse as concepções ideológicas dos editores”.

O artigo, intitulado “Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity” (em português, “Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”), foi publicado na edição de “Guerras da Ciência” da Social Text e argumentava que a gravidade quântica seria uma construção social e linguística. Na época, a revista não contava com um processo de revisão por pares e não submeteu o artigo a revisores. Na época da publicação, Sokal anunciou em outra publicação que o artigo era uma fraude, qualificando-o como “um pasticho de jargões esquerdistas, referências aduladoras, citações pomposas e completo nonsense", tendo sido “estruturado em torno das citações mais tolas que eu pude encontrar sobre Matemática e Física” feitas por acadêmicos pós-modernos.

A ficção científica já havia previsto casos semelhantes. Um exemplo é a obra The Number of the Beast, de Robert A. Heinlein, em que o protagonista Zebadiah Carter obtém o doutorado mediante uma tese deliberadamente construída sem conteúdo.

A Holanda do século XVII e sua experiência pioneira com a liberdade

Na imagem: Emmanuel de Witte, Bolsa de Valores de Amsterdã, 1653

Vamos seguir o conselho dos esquerdistas e estudar um pouco de história? Gostaria de falar um pouco sobre o Século de Ouro Holandês que compreendeu o período entre 1584 e 1702. Um dos raros períodos da história da humanidade em que um povo desfrutou de relativa liberdade e por isso mesmo, é um dos meus favoritos.

Por volta de 1581, a Holanda se torna independente do império espanhol, fundando a República Unida dos Países Baixos e dando início ao período conhecido como o Século de Ouro Holandês. A República era uma confederação de 7 províncias que tinham seus próprios representantes e gozavam de grande autonomia. A República como um todo oferecia liberdade política, econômica, de pensamento e de religião sem precedentes na história ocidental. Essa liberdade atraiu refugiados de várias partes da Europa que ali encontraram asilo, principalmente intelectuais, cientistas e artistas, além de desenvolver o comércio e trazer grande prosperidade. Nos séculos XVII e XVIII, os neerlandeses eram um povo disciplinado, racional e criativo, que foi capaz de construir a nação Europeia economicamente mais rica e cientificamente mais avançada.

Durante uma grande parte do século XVII, os neerlandeses, tradicionalmente habilidosos navegadores e cartógrafos dominaram o comércio mundial. Primeiro, os neerlandeses dominaram o comércio entre países europeus, a região dos Países Baixos era favoravelmente posicionada entre as rotas de comércio do Leste-Oeste e do Norte-Sul e ligada à uma grande parte do interior alemão através do rio Reno. Comerciantes neerlandeses transportaram vinho da França e de Portugal para a região Báltica e retornaram com grãos destinados aos países do Mar Mediterrâneo.

Mas vivendo num país pequeno e de poucos recursos, os neerlandeses tiveram de ir mais além. Em 1602, a Companhia Neerlandesa das Índias Orientais (VOC), a primeira multinacional da História, foi fundada. Mas nenhum cidadão da época possuía capital o suficiente para financiar sozinho, as ousadas aventuras marítimas da companhia. Pra isso foi fundada, no mesmo ano, a Bolsa de Valores de Amsterdã, com o objetivo de vender ações da companhia, a primeira na história a realizar esta prática, levantando assim o capital necessário.

O florescente comércio neerlandês resultou numa larga e rica classe comercial. A nova prosperidade trouxe mais atenção e patrocínio para as artes visuais, a literatura, e a ciência. Os navegadores neerlandeses também descobriram a Nova Zelândia, as ilhas Fiji e várias outras ilhas do pacífico. A descoberta do novo e o contato com culturas e povos exóticos, acabou com a complacência da sociedade neerlandesa e abriu a mente de seus cidadãos para novas ideias.

Em consequência de seu clima de tolerância intelectual, a República Neerlandesa atraiu cientistas e intelectuais de toda a Europa. Especialmente a renomada Universidade de Leiden tornou-se o lugar de reunião para estas pessoas, como o filósofo René Descartes, por exemplo, que viveu em Leiden de 1628 à 1649. Depois de ter problemas com a inquisição, Galileu escolheu os Países Baixos para realizar alguns de seus trabalhos científicos. Até mesmo John Locke, o pai do liberalismo, fugiu para os Países Baixos em 1683. O filósofo Baruch de Espinoza também viveu na Holanda dessa época.

O famoso engenheiro hidráulico neerlandês Jan Leeghwater (1575-1650) alcançou importantes vitórias na eterna luta dos Países Baixos contra o mar. Leeghwater adicionou uma considerável parte de terra à república, convertendo diversos grandes lagos em pôlderes através da drenagem das terras por moinhos de vento.

Christiaan Huygens (1629-1695) foi um famoso matemático, físico e astrônomo. Autor de uma frase bastante revolucionária para a época: "O mundo é meu país, a ciência é minha religião", ele inventou o relógio de pêndulo, que foi um grande passo à frente na medição exata do tempo, o que por sua vez era muito importante para as navegações. Entre suas contribuições à astronomia encontra-se a explicação dos anéis planetários de Saturno. Ele também contribuiu na área da ótica. O mais famoso cientista neerlandês na área da óptica é certamente Anton van Leeuwenhoek, que realizou grandes melhorias no microscópio e foi o primeiro a estudar metódicamente a vida microscópia, criando assim as fundações para a área de microbiologia. É provável que, para aprimorar este instrumento, ele tenha se inspirado nas lentes que os comerciantes usavam para verificar a qualidade das mercadorias.

Novamente, em consequência do clima de tolerância, a edição livreira floresceu. Diversos livros sobre religião, filosofia e ciência, considerados controversos em outros países, foram publicados nos Países Baixos e exportados ao exterior. Consequentemente, os Países Baixos tornaram-se cada vez mais a editora livreira da Europa no século XVII.

Todo este movimento em favor da razão, da ciência e do esclarecimento, deu origem ao que mais tarde seria o iluminismo e o clima de liberdade, tolerância e descentralização política inspirou o movimento pela independência dos Estados Unidos.

A região dos Países Baixos passou por um desenvolvimento cultural que superou o de países vizinhos. Enquanto ricos aristocratas por muitas vezes tornaram-se patrocinadores das artes em outros países, na República Neerlandesa esse lugar foi ocupado por ricos comerciantes.

Os mais famosos pintores do Século de Ouro são as figuras mais dominantes do período: Rembrandt, o mestre do gênero Johannes Vermeer, o inovador pintor paisagista Jacob van Ruisdael, e Frans Hals, que injetou nova vida no retratismo.

Fontes:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Século_de_Ouro_dos_Países_Baixos
https://en.wikipedia.org/wiki/Dutch_Republic
https://en.wikipedia.org/wiki/Politics_and_government_of_the_Netherlands_(1581–1795)
https://en.wikipedia.org/wiki/Act_of_Abjuration

23 de jan. de 2021

Um caso de fracasso do comunismo está na origem do Dia de Ação de Graças

Em 1620, um grupo de colonizadores europeus fugia da perseguição religiosa na Europa e ia em direção aos Estados Unidos. Eles fundaram uma colônia no Massachussets, onde eles poderiam não só praticar sua religião em paz, mas também fundar um novo tipo de sociedade, baseada na propriedade coletiva e no "altruismo", uma forma simples de comunismo.

O resultado dessa experiência social foi um desastre, conforme registrado por William Bradford, eleito governador da colônia e uma das mais tradicionais fontes sobre a origem desta data: As pessoas agiam de forma extremamente indolente, sabendo que, independente do quanto trabalhassem, receberiam o mesmo que as outras.

Como resultado, as colheitas foram péssimas e quando o inverno chegou, quase metade dos colonos morreu debilitada pela desnutrição.

Depois disso, eles acharam melhor dividir a terra em propriedades privadas nas quais cada familia trabalharia para prover seu próprio sustento.

No ano seguinte, a colheita foi abundante e os colonos fizeram uma grande festa para comemorar e agradecer a Deus pela fartura. A data passou a ser comemorada desde então e, séculos mais tarde, o presidente Abraham Lincoln a tornou feriado.


Leia mais detalhes da história em:

Matéria no site da TV americana PBS

Artigo sobre o assunto em inglês

21 de jan. de 2021

É possível ser católico e liberal?

Essa pergunta definitivamente, não tem uma resposta simples, então o texto será longo. Prepare-se, ajeite-se na sua cadeira e certifique-se de que está confortável, pois vamos percorrer caminhos tortuosos e difíceis. Só o que posso garantir é que no final, valerá a pena. Pelo menos, vou me dedicar para isso, tanto que este talvez seja o texto mais importante que eu já escrevi.

Por isso, não posso perder tempo com introduções muito longas e devo partir logo para o que interessa.

Antes de responder à pergunta do título: O que é ser liberal?

Essa pergunta é talvez tão difícil de responder quanto a do próprio título deste artigo, mas exige ser respondida primeiro. O problema é que eu, sinceramente, não serei capaz de dar uma resposta curta, conveniente para as limitações deste artigo e ao mesmo tempo, completa o suficiente. Então terei que pedir que acredite no que eu vou dizer aqui: O liberalismo é muito mais do que você imagina. Não é fácil fazer as pessoas entenderem isso. Essa é praticamente a missão última deste blog e mesmo assim, não venho obtendo muito sucesso. O liberalismo não é uma doutrina, nem um corpo fechado de ideias e isso eu pretendo ir deixando mais claro ao longo de todo o texto. Se você pensar o liberalismo enquanto uma doutrina, então chegará à conclusão, que eu depois de muito tempo estudando o assunto cheguei, de que O LIBERALISMO NÃO É COMPATÍVEL NEM COM ELE MESMO. Mas se você tentar pensar o liberalismo enquanto uma filosofia vasta e rica, aí encontrará perspectivas mais interessantes.

Uma dica de leitura para começar a abrir sua mente em relação ao assunto é o enciclopédico O Liberalismo – Antigo e Moderno de José Guilherme Merquior. O próprio autor contudo não ousa definir liberalismo, ao invés disso, diz que para entender o conceito, você precisa conhecer sua história e suas várias manifestações. Acho que dar uma olhada no índice do livro, já te dará uma pequena dimensão do que estou dizendo. Pensadores como Keynes, Rawls e Weber podem ser tratados como liberais? Enquanto estiver lendo esse texto, tenha em mente que a resposta pode ser sim.

A Igreja e os rivais do liberalismo

Mesmo entre os que admitem que a Igreja condenou expressamente o comunismo, o socialismo e o fascismo, nossos rivais políticos e filosóficos, tem-se dito que a Igreja igualmente condenou o liberalismo e o capitalismo. Mas até que ponto esta afirmação está correta? Vamos tentar fazer uma exegese do que a Igreja realmente pensa do capitalismo e do liberalismo, em especial em seu aspecto econômico.

Vamos começar comparando as críticas que a Igreja fez contra o socialismo e o comunismo com as críticas feitas ao capitalismo e conferir se são realmente da mesma ordem, natureza ou magnitude. Contra o socialismo, a Doutrina Católica é bem clara ao condenar até mesmo suas versões mais moderadas.

“Socialismo religioso, socialismo cristão, são termos contraditórios: ninguém pode ao mesmo tempo ser bom católico e socialista verdadeiro”

(Quadragesimo Anno, no. 119)

“O socialismo quer se considere como doutrina, quer como facto histórico, ou como ‘ação’, se é verdadeiro socialismo, mesmo depois de se aproximar da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode conciliar-se com a doutrina católica; pois concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã. (…)”

(Quadragesimo Anno, III, 2)

“(…) Entre comunismo e cristianismo, o pontífice [Papa Pio XI] declara novamente que a oposição é radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao socialismo moderado”

(Mater et Magistra, 34)

Já contra o capitalismo, o que há não é uma condenação total e sim, ressalvas pontuais. Uma passagem frequentemente citada quando se debate a relação entre a Doutrina Social Católica e as grandes ideologias políticas modernas é esta do Catecismo:

2425 – “a Igreja tem rejeitado as ideologias totalitárias e ateias associadas, nos tempos modernos, ao comunismo ou ao socialismo. Além disso, na prática do capitalismo ela recusou o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano. A regulamentação da economia exclusivamente através do planejamento centralizado perverte na base os vínculos sociais, sua regulamentação unicamente pela lei do mercado vai contra a justiça social”

Fica claro que se tratando do comunismo e do socialismo, a rejeição é total, já contra o capitalismo, o que há é uma recusa do “individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano.” – Ora, mas o individualismo não é em si, um valor tão caro aos liberais? – Este ponto será detalhadamente debatido adiante.

Por enquanto, convém dizer que a liberdade é um dos três valores que norteiam toda a Doutrina Social da Igreja, os outros dois sendo a verdade e a justiça. A liberdade é uma enorme preocupação da Doutrina Católica, tanto quanto dos liberais. Veja esta passagem do Catecismo Católico:

1738 – “A liberdade exercita-se nas relações entre seres humanos. Toda a pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a todos este dever do respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, nomeadamente em matéria moral e religiosa (34). Este direito deve ser civilmente reconhecido e protegido dentro dos limites do bem comum e da ordem pública”

A Igreja e o Mercado

O que a Igreja pensa sobre esta instituição conhecida como mercado, livre mercado, economia de mercado ou ainda economia de livre empresa? O Compêndio da Doutrina Social da Igreja é bastante favorável, como você pode conferir:

347 O livre mercado é uma instituição socialmente importante para a sua capacidade de garantir resultados eficientes na produção de bens e serviços. Historicamente, o mercado deu provas de saber impulsionar e manter, por longo período, o desenvolvimento econômico. Existem boas razões para acreditar que, em muitas circunstâncias, “o livre mercado seja o instrumento mais eficaz para colocar os recursos e responder eficazmente as necessidades”. A doutrina social da Igreja aprecia as vantagens seguras que os mecanismos do livre mercado oferecem, seja para uma melhor utilização dos recursos, seja para facilitar a troca de produtos; estes mecanismos “sobretudo, colocam no centro a vontade e as preferências da pessoa que no contrato se encontram com aqueles de uma outra pessoa”.

Um verdadeiro mercado concorrencial é um instrumento eficaz para alcançar importantes objetivos de justiça: moderar os excessos de lucros das empresas singulares; responder às exigências dos consumidores; realizar uma melhor utilização e economia dos recursos; premiar os esforços empresariais e a habilidade de inovação; fazer circular a informação, em modo que seja verdadeiramente possível confrontar e adquirir os produtos em um contexto de saudável concorrência.

Se você ler este capítulo todo, perceberá que, apesar de aprovar a economia de mercado, a Igreja tem algumas ressalvas e estabelece limites ao escopo do mercado. Não convém discutir estes limites detalhadamente aqui, basta deixar claro que o liberalismo também reconhece limites ao mercado e suas atribuições. Tenha em mente aquilo que explicamos no início do texto: O liberalismo não é uma doutrina fixa. O laissez faire, este sim uma doutrina, é uma simplificação grosseira do liberalismo, como deixaremos claro mais adiante.

A Igreja e o Capitalismo

Alguns ainda podem objetar dizendo que economia de mercado e capitalismo não são a mesma coisa. O mercado é uma instituição antiga, milenar, muito anterior ao capitalismo, existindo de forma perene ao longo do tempo, do espaço e nas mais variadas civilizações.

Isso está correto, mas a definição de capitalismo enquanto economia de mercado, também é bastante usada, e se a definição de capitalismo que temos em mente é essa, então a Doutrina Católica é sim, favorável ao capitalismo.

“(…)pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos Países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso econômico e civil?

A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por ‘capitalismo’ se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de ‘economia de empresa’, ou de ‘economia de mercado’, ou simplesmente de ‘economia livre’. Mas se por ‘capitalismo’ se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa.”

João Paulo II – Centesimus annum, 42

O mercado de trabalho

Como mencionado anteriormente, apesar favorecer o capitalismo enquanto economia de mercado, a Igreja rejeita “primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano”. Isso quer dizer que salários e condições de trabalho não devem ser definidos exclusivamente pelo mercado. Mas isso quer dizer então que tais questões devem ser resolvidas totalmente pelo estado? A resposta é NÃO. A Doutrina Social da Igreja não cai na falsa dicotomia entre Mercado e Estado. Nem tudo o que não é mercado, automaticamente é estado e nem tudo o que não é estado é automaticamente mercado. Estas não são as únicas instituições com as quais contamos para organizar a vida social. A DSI privilegia aquilo que ela própria chama de corpos sociais intermédios, no caso específico das relações de trabalho, um exemplo importante de corpos sociais intermediários são os sindicatos.

“Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta.

Mas, sendo de temer que nestes casos e em outros análogos, como no que diz respeito às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários, a intervenção dos poderes públicos seja importuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares, será preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos de que falaremos, mais adiante, ou que se recorra a outros meios de defender os interesses dos operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado, se a questão o reclamar”

Leão XIII – Rerum Novarum, 27

Reparem que a encíclica que deu origem à DSI coloca que a “intervenção dos poderes públicos” no que diz respeito ao trabalho, pode ser “importuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares“, nesse caso “será preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos.” O estado pode ser chamado a intervir de forma a validar os acordos coletivos entre patrões e trabalhadores, mais do que para estabelecer ele próprio as condições. Até porque as circunstâncias podem variar no tempo e no espaço de forma muito complexa para ser resolvida de forma centralizada. Tal solução, parece funcionar bem em vários países, como por exemplo, na Dinamarca.

Mas e o Individualismo?

Bom, vimos que a DSI é a favor do capitalismo enquanto economia de mercado mas com duas ressalvas: Ela recusa o individualismo e o primado absoluto do mercado sobre o trabalho. Vimos porém, que recusar o primado absoluto do mercado não é o mesmo que aceitar o primado absoluto do estado. Para isso existem os corpos sociais intermediários. O Princípio de Subsidiariedade da Igreja (do qual falaremos mais adiante) inclusive, coloca que estes corpos surgem de forma espontânea na sociedade. Falta então agora explicar a recusa da Igreja contra o individualismo, um valor aparentemente caro aos liberais. Mas será que quando falam em individualismo, a Igreja e os liberais estão falando da mesma coisa?

O termo individualismo pode ter duas definições, como explica Karl Popper, autor liberal tipicamente individualista:

“A palavra ‘individualismo’ pode ser usada (de acordo com o Dicionário de Oxford) de dois modos diferentes: a) em oposição ao coletivismo; e b) em oposição ao altruísmo. Não há outra palavra para expressar a primeira significação, mas há diversos sinônimos para a segunda, como por exemplo ‘egoismo’, ‘egolatria’. Eis porque, no que se segue, usarei o termo ‘individualismo’ exclusivamente no sentido a)”

Popper, Karl Raimund – A Sociedade Aberta e Seus Inimigos v.1. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. – pgs. 114 e 115

O que parece concordar com a definição da Wikipedia de Individualismo.

Os liberais então defendem o individualismo enquanto oposto de coletivismo e não como sinônimo de egoísmo. O individualismo que a Igreja condena, provavelmente é o individualismo enquanto egoísmo, ou no máximo, enquanto noção equivocada de que a busca racional pelo auto-interesse é suficiente para regular todas as relações sociais. A Igreja contudo, também se opõe ao coletivismo, como fica claro nos trechos a seguir tirados do Compêndio da DSI:

“131 (…) A pessoa humana há de ser sempre compreendida na sua irrepetível e ineliminável singularidade. O homem existe, com efeito, antes de tudo como subjetividade, como centro de consciência e de liberdade, cuja história única e não comparável com nenhuma outra expressa a sua irredutibilidade a toda e qualquer tentativa de constrangê-lo dentro de esquemas de pensamento ou sistemas de poder, ideológicos ou não. Isto impõe, antes de tudo, a exigência não somente do simples respeito por parte de todos, e especialmente das instituições políticas e sociais e dos seus responsáveis para com cada homem desta terra, mas bem mais, isto comporta que o primeiro compromisso de cada um em relação ao outro e sobretudo destas mesmas instituições, seja precisamente a promoção do desenvolvimento integral da pessoa.”

“133 (…) A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro. É necessário portanto que as autoridades públicas vigiem com atenção, para que toda a restrição da liberdade ou qualquer gênero de ônus imposto ao agir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e para que seja garantida a efetiva praticabilidade dos direitos humanos. Tudo isto, uma vez mais, se funda na visão do homem como pessoa, ou seja, como sujeito ativo e responsável do próprio processo de crescimento, juntamente com a comunidade de que faz parte.”

A Doutrina Laissez Faire

Qualquer pessoa que se dedique a estudar a DSI por algum tempo, logo perceberá que, apesar de defender a liberdade, a economia de mercado e de se opor ao coletivismo, ela defende também inúmeras intervenções do estado na economia e na sociedade. Isso porém, não a torna anti-liberal, visto que o próprio liberalismo também defende limites à liberdade e ao livre mercado. Como dissemos, a máxima laissez faire é a tentativa de transformar a rica e complexa filosofia liberal, numa doutrina, mas trata-se de uma simplificação grosseira. O problema é que tanto os detratores quanto adeptos menos informados do liberalismo parecem não ter compreendido isso ainda.

Mesmo os liberais mais intransigentes, como Milton Friedman, admitem um bom número de casos em que a intervenção dos poderes públicos se mostra necessária, uma quantidade de concessões que certamente surpreende os que conhecem apenas essa versão “vulgar” do liberalismo. Mas é em Hayek, o grande expoente do liberalismo econômico moderno, que encontramos alguns esclarecimentos:

“Os princípios básicos do liberalismo não contêm nenhum elemento que o faça um credo estacionário, nenhuma regra fixa e imutável. O princípio fundamental segundo o qual devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção pode ter uma infinita variedade de aplicações. Há, em particular, enorme diferença entre criar deliberadamente um sistema no qual a concorrência produza os maiores benefícios possíveis, e aceitar passivamente as instituições tais como elas são. Talvez nada tenha sido mais prejudicial à causa liberal do que a obstinada insistência de alguns liberais em certas regras gerais primitivas, sobretudo o princípio do laissez-faire. Contudo, de certa maneira, essa insistência era necessária e inevitável. Diante dos inumeráveis interesses a demonstrar que certas medidas trariam benefícios óbvios e imediatos a alguns, ao passo que o mal por elas causado era muito mais indireto e difícil de perceber, apenas regras fixas e imutáveis teriam sido eficazes. E como se firmara uma forte convicção de que era imprescindível haver liberdade na área industrial, a tentação de apresentá-la como uma regra sem exceções foi grande demais para ser evitada.

No entanto, essa atitude assumida por muitos vulgarizadores da doutrina liberal tornava quase inevitável que, uma vez abalados alguns de seus pontos, logo toda ela desmoronasse. Tal posição enfraqueceu-se ainda mais devido ao progresso necessariamente lento de uma política que visava à gradativa melhoria do arcabouço institucional de uma sociedade livre. Esse progresso dependia da nossa maior compreensão das forças sociais e das condições mais favoráveis ao seu bom funcionamento. Como a tarefa era auxiliar e, onde fosse preciso, suplementar a ação de tais forças, o primeiro requisito era compreendê-las.”

pg. 42 e 43

“É importante não confundir a oposição a essa espécie de planejamento com uma dogmática atitude de laissez-faire.”

pg. 58

“A dicotomia entre a intervenção ou a não intervenção do estado é inteiramente falsa, e o termo laissez-faire é uma definição bastante ambígua e ilusória dos princípios em que se baseia uma política liberal.”

pg. 95

Hayek, F.A. O caminho da servidão / F. A. Hayek. – São Paulo : Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

 Mas…A Igreja já criticou severamente o liberalismo

Como Hayek explicou, os liberais clássicos, ou sejam, os pensadores do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, não foram capazes de evitar a tentação de transformar a filosofia liberal numa doutrina radical e fechada, num corpo de soluções prontas que ele chamou de “princípio do laissez-faire”. A primeira critica nominalmente explícita da Igreja contra o liberalismo, data de 1931, com a encíclica Quadragesimo Anno. O novo liberalismo fundado por Hayek e seus contemporâneos, corrigindo estes excessos, só viria a tomar corpo em 1947, com a fundação da Mont Pelerin Society. Portanto, é importantíssimo entender que as primeiras criticas da Igreja contra o liberalismo, tinham em mente este antigo e primitivo liberalismo.

Fazendo uma revisão então do que vimos até agora: a. A igreja condenou o comunismo e o socialismo, mesmo em suas vertentes mais moderadas; b. A igreja favorece o capitalismo enquanto sinônimo de economia de mercado, porém; c. Rejeita o individualismo; d. Provavelmente entendido como egoísmo, porque a igreja também rejeita o coletivismo; e. Rejeita o primado absoluto do mercado sobre o trabalho porém; f. Isso não significa aceitar o primado absoluto do estado, pelo contrário, a Doutrina Social da Igreja considera inconveniente a interferência excessiva do estado também nessa área.

Vimos então que tudo é uma questão de definição. A igreja pode ser contra ou a favor do capitalismo, contra ou a favor do individualismo, dependendo de como você define cada um desses termos, o mesmo parece valer portanto, para o próprio liberalismo. Insistir então que a Doutrina Social da Igreja condena o liberalismo com base em trechos isolados de uma ou outra encíclica, é se prender a termos imprecisos ao invés de procurar fazer uma exegese mais profunda do que a Doutrina da Igreja pretende de fato dizer, é se prender à letra e matar o espírito.

Qualquer pessoa que defenda a economia de mercado, a descentralização administrativa e seja contra a intromissão excessiva do estado na economia ou na vida privada e contra o coletivismo, ou seja, contra o sacrifício da dignidade humana sob a desculpa de um bem coletivo, seria facilmente classificada como liberal por qualquer cientista político ou mesmo pelo senso comum, ainda que rejeitasse o rótulo e estaria, ao mesmo tempo, defendendo exatamente aquilo que a Doutrina Social da Igreja defende. E se o rótulo de liberal tiver de ser abandonado simplesmente para se conformar à DSI levada ao pé da letra, não seria muito difícil assumir outro rótulo qualquer como “conservador” ou “democrata cristão” e continuar defendendo exatamente as mesmas ideias. Mas penso que o caminho da dissimulação não é o mais honesto, nem o mais cristão.

Mas mesmo quando a implicância é especificamente contra o mero rótulo “liberal”, já houve ocasiões em que ele foi usado numa conotação positiva por outros papas, como no discurso do papa Bento XVI para o Parlamento Alemão em 2011, onde ele fala do Estado LIBERAL de Direito de forma bastante elogiosa. Bento XVI parece discordar de líderes da extrema direita como por exemplo, Viktor Orbán, cuja retórica falaciosa tenta contrapor a Democracia Liberal a uma pretensa “Democracia Cristã”.

Mas ainda não podemos nos dar por satisfeitos. Se tratando de conceitos tão complexos e imprecisos, é necessário ir mais fundo para saber em que medida, o liberalismo é compatível com a Doutrina da Igreja.

Magistério Ordinário

Há sim uma forma extrema de liberalismo, uma que leva a doutrina laissez faire às últimas consequências e que portanto, parece incompatível com a Doutrina Social Católica, esta corrente é mais conhecida como libertarianismo. Porém, é curioso notar que vários dos autores “libertários” mais influentes da atualidade são católicos, como Jeffrey Tucker, Thomas Woods, Lew Rockwell e o falecido padre James A. Sadowsky. E mais curioso ainda é que nenhum deles foi excomungado por isso ou sofreu qualquer tipo de censura (até onde eu saiba), pelo contrário, o citado padre Sadowsky fazia parte do próprio clero.

A explicação é bastante simples: A Doutrina Social da Igreja faz parte do Magistério Ordinário da Igreja, ou seja, faz parte de uma categoria de ensinamentos que pode conter erros, que estão sujeitos a revisão e que não possuem status de dogma. Isso explica não só a relativa tolerância para com católicos “libertários” mas também para com os católicos socialistas, comunistas e para os teólogos da libertação que ainda insistem em tentar conciliar marxismo e catolicismo. Se um extremo é tolerado, por que o outro não seria?

Isso obviamente não significa que a Doutrina Social da Igreja possa ser simplesmente desprezada. Tratá-la como opcional, na minha opinião, é bastante temeroso. Eu particularmente, muito pelo contrário, acredito que ela oferece inúmeras contribuições originais para as ciências sociais que merecem atenção mesmo dos não católicos. Trata-se de mais um dos muitos legados e contribuições da Igreja para a civilização.

E as liberdades civis?

Uma vez refutados os argumentos comuns da esquerda, é hora de nos voltarmos para os possíveis argumentos da direita. A ala da direita católica pode argumentar que, embora um grau considerável de livre mercado seja benéfico, as demais liberdades defendidas pelos liberais, as chamadas “liberdades civis”, não passam de licenciosidades, libertinagem e relativismo moral. Até que ponto isso é verdade?

Da mesma forma que para as liberdades econômicas, também existem muitos “graus” de liberdade civil. Não é uma questão de preto ou branco, mas de tons de cinza. Até porque o extremo oposto, o da completa ausência de liberdade civil, cai no totalitarismo e nega completamente um dos três pilares da Doutrina Social da Igreja que é o da Liberdade. Qual tom de cinza então mais se aproxima da Doutrina Social Católica? É difícil, talvez impossível, dar uma resposta exata, mas podemos encontrar alguns parâmetros.

A Doutrina Social da Igreja defende o Princípio da Subsidiariedade (Comp. da DSI – 185 a 188), princípio que rejeita o excesso de centralização do poder, de intervenção do estado, de assistencialismo e burocratização; defende a democracia e a participação popular na política (189 a 191); defende a igual dignidade de todos os seres humanos (144 a 148) e os direitos humanos (152 a 155). Com isso, ela se coloca em oposição frontal às formas autoritárias e totalitárias de direita, o que inclui não só as formas extremas da direita, como o fascismo e o nazismo, mas também as ditaduras militares da América Latina, com tanta frequência elogiadas por parte da direita. Nota-se também que toda forma de tratamento desigual por questões de sexo, raça ou classe social, parecem incompatíveis com esses princípios.

Liberdade Religiosa

Sabe-se que a Igreja Católica teve dificuldades em lidar com divergências no passado e que perseguições às religiões minoritárias, filosofias ou mesmo à ciência em seus primórdios, eram frequentes, ou pelo menos assim dizem os professores de história no colégio. Até que ponto essas narrativas estão corretas, não sei dizer exatamente, mas elas podem dar a impressão de que a Igreja Católica não aceita a Liberdade Religiosa.

Se um dia a Igreja foi intolerante para com outras crenças, isso certamente mudou para sempre com o Concílio do Vaticano II. Assim está escrito na Declaração DIGNITATIS HUMANAE:

Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma (…)”

Vícios e Virtudes

Embora mais comum entre os cristãos protestantes, a ideia de que cabe ao estado impor os mais rígidos padrões de virtude cristã, pode atrair também alguns católicos. Estes fundamentalistas têm uma enorme dificuldade em separar moral de virtude. Contra esse pensamento escreveu São Tomás de Aquino:

“Ora, a lei humana é feita para a multidão dos homens, composta na sua maior parte de homens de virtude imperfeita. Por isso ela não proíbe todos os vícios, de que se os virtuosos abstêm, mas só os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se. E principalmente os que causam dano a outrem, ou aqueles sem cuja proibição a sociedade humana não pode subsistir; assim, a lei humana proíbe o homicídio, o furto e atos semelhantes.”

10. Suma Teológica – Questão 96: Artigo 2.o

Conclusão

Encerro o artigo por aqui, mas ainda anos luz de esgotar o assunto, não por falta do que discutir, mas porque penso que um artigo de um blog anônimo na internet deve se limitar ao tamanho de sua relevância. Espero, no mínimo, despertar a curiosidade, provocar o debate e mostrar que uma nova perspectiva é possível.

A resposta para a pergunta do título deste artigo então é: dependendo da forma como você define os termos, sim, é possível ser liberal e católico. Na verdade, é possível ir mais além e afirmar que o núcleo duro do liberalismo coincide perfeitamente com os propósitos e preocupações da Doutrina Social da Igreja. Ambos se preocupam em proteger a liberdade, entendida como a possibilidade de agir conforme sua própria consciência, desde que não cause dano a outros; ambos procuram proteger a dignidade humana de projetos coletivistas que tratam o ser humano como mero instrumento; ambos defendem a igualdade de direitos de todos os seres humanos; ambos se opõe ao totalitarismo e o mais importante, para os que pensam que estes ideais são por demais abrangentes e que qualquer corrente política minimamente humana e democrática, preza por estes ideais, demonstramos que a Doutrina Social da Igreja aponta como meios válidos para estes fins, a descentralização administrativa, a desburocratização, o princípio da subsidiariedade e a economia de mercado.

Se existem ainda algumas dificuldades em se conciliar a Doutrina Católica com o liberalismo, está definitivamente provado que elas nem se comparam às dificuldades encontradas por outras correntes políticas.


20 de jan. de 2021

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos: Um livro atual e necessário

Havia muito tempo que eu queria ler este livro e já tem uns dois anos que li. Enquanto lia, fui fazendo algumas anotações que pretendia transformar num artigo mais tarde. Aqui finalmente está o resultado. Antes de tudo, devo avisar que esta resenha se refere apenas ao volume I do livro, que examina as ideias de Platão. O segundo volume, que trata das ideias de Marx e Hegel, ficarão para, quem sabe, um artigo futuro, mas isso não vem tanto ao caso porque são as ideias originais do próprio Popper, expressas nesse livro, que mais me interessaram.

Três fatores estimulavam minha curiosidade quanto a este livro, o primeiro é a importância de Karl Popper para o pensamento liberal do século XX. Este me parecia um livro fundamental para o liberalismo moderno, então eu me sentia na obrigação de lê-lo. O segundo é a importância de Popper para a própria filosofia. Trata-se de um autor tão influente e respeitado na filosofia política quanto na filosofia da ciência, e esse é um posto que poucos pensadores recentes conseguiram alcançar. E o mais importante: Sua filosofia política e sua filosofia da ciência estão intimamente conectadas, então a leitura me parecia fundamental para entender melhor as bases epistemológicas do liberalismo. Outro fator foi a suposta influência de Popper sobre George Soros. O pouco que eu havia ouvido falar da filosofia de Popper de segunda mão, parecia totalmente incompatível com os projetos sociais e políticos financiados por Soros. Adianto que essa impressão foi reforçada com a leitura do livro. A conclusão que eu cheguei foi a de que, de fato, George Soros deturpou Karl Popper. Soros parece representar muito mais a filosofia historicista de Francis Fukuyama que, aliás, tem ligações com Soros, do que a filosofia anti-historicista de Popper.

Vamos então mergulhar neste livro que mudou a forma como eu vejo o mundo, nessa obra que ofereceu a argamassa que uniu minha visão sobre diversos assuntos e me ajudou a conciliar de forma coerente minhas opiniões sobre liberdade e democracia, ciência, moral e religião, progresso e tradição, dentre vários outros tópicos.

Dualismo crítico

Embora David Hume não seja citado diretamente por Popper neste livro, sabendo da influência do primeiro sobre o segundo, podemos presumir que o conceito de Dualismo Crítico de Popper é uma consequência lógica da Navalha de Hume.

Estes dois conceitos filosóficos me causaram uma forte impressão e me influenciaram de uma forma irreversível, além de serem fundamentais para encerrar algumas polêmicas muito atuais, por isso quero começar falando deles.

A Navalha de Hume dizia que não podemos tirar conclusões morais tão facilmente a partir de fatos, que deve existir uma separação rígida entre matérias de fato e matérias de moral. Não entendeu? Calma que é mais fácil entender a importância desse conceito quando você olha para as conclusões absurdas que podem surgir da sua não aplicação.

Quando você tenta usar fatos para fazer juízos morais ou de valor, você cai na Falácia Naturalista. E quando você tenta usar juízos de valor para constatar fatos, você cai na Falácia Moralista.

Exemplos de Falácia Naturalista:

“Tudo o que é natural é bom.”

“Maconha é uma erva natural, portanto, não faz mal.”

“Transgênicos fazem mal porque são modificações da natureza.”

“Medicina natural é melhor do que remédios produzidos pela indústria.”

Veja bem, supondo (apenas supondo) que maconha realmente não faz mal, não é o fato de ser natural que prova isso. Nem tudo o que é natural é bom. Se maconha não faz mal, cogumelos venenosos certamente fazem, e também são naturais. A Falácia Naturalista parte do pressuposto de que tudo o que é natural é bom. Você certamente deve se lembrar de vários outros exemplos dessa falácia, na verdade, eu costumo ouvir exemplos dela diariamente, o que confirma a importância e a atualidade desse tópico.

Exemplos de Falácia Moralista:

“Homossexualidade é imoral, logo, não pode ser inata.”

“Matar animais é cruel, logo, não existe utilidade fisiológica em comer carne.”

“Egoísmo é ruim, logo, não faz parte da natureza humana.”

“Homens e mulheres têm direitos iguais, logo, não existem diferenças biológicas entre homens e mulheres.”

Note que a Falácia Moralista parte do mesmo pressuposto falso de que tudo o que é natural é bom, só faz o caminho lógico inverso. Projetam-se valores morais sobre a natureza, como se a natureza ou a realidade fossem obrigadas a se conformar aos nossos critérios morais. É bom deixar claro também que não estou rejeitando, de início, nem as premissas, nem as conclusões das afirmações acima, só estou dizendo que não dá pra derivar uma coisa da outra.

Outro autor liberal que aplicou a Navalha de Hume à filosofia social foi Robert Nozick ao falar sobre “sociologia normativa”. Esse conceito renderia um artigo à parte, mas gostaria de citar um exemplo que confirma a importância e a atualidade desse assunto. O exemplo é o seguinte: “O machismo é ruim, logo, a diferença salarial entre homens e mulheres é causada pelo machismo.”

Realmente, o machismo é muito ruim e talvez, ele realmente seja a causa da desigualdade salarial entre homens e mulheres. Talvez. É papel das ciências sociais, nesse caso, da sociologia e da economia, fazer uma análise POSITIVA e científica das causas da desigualdade salarial entre homens e mulheres. É papel da ciência, descobrir relações de causa e efeito, não podemos deixar que uma premissa moral, ou seja, NORMATIVA, influencie uma análise que deve ser exclusivamente POSITIVA. Até porque, talvez algo tão ruim ou pior que o machismo seja a causa, e se errarmos no diagnóstico, provavelmente erraremos na solução.

Parte do politicamente correto hoje em dia se baseia nesta falácia. Se você ousa dizer que a causa da desigualdade salarial entre homens e mulheres não é o machismo, algumas pessoas vão pensar que você está tentando minimizar a gravidade do machismo. O que é um absurdo evidentemente. O machismo é ruim, mas nem por isso eu devo achar que ele foi o causador da extinção dos dinossauros.

Mas nada disso está no livro. Essa foi apenas uma breve introdução para que você compreenda o que é Dualismo Crítico. Popper chama a total incapacidade de separar matérias de fato de matérias morais, de separar o positivo do normativo, de Monismo Ingênuo. O Monismo Ingênuo não vê diferença entre as leis morais e as leis da natureza. Ele é um resquício das sociedades primitivas, que achavam que tanto as regras morais quanto as leis da natureza foram escritas pelos deuses e eram portanto, igualmente inquebráveis.

O monismo ingênuo começa a desmoronar quando algumas pessoas entram em contato com outros povos, que adoram outros deuses e que têm regras morais diferentes. Quando eles observam que estes outros povos estranhos não seguem as leis que ele tinha como inquestionáveis sem que nada de mal lhes aconteça, é que eles percebem que as leis da natureza são inquebráveis e se submeter a elas não é uma opção, mas se submeter às leis morais é opcional. Mas veja bem, dizer que algo é opcional não quer dizer que é livre de consequências. Você é livre para seguir uma regra ou não, mas não está livre das consequências.

Por mais que lhe pareça óbvio agora o quanto o Monismo Ingênuo é, como o nome sugere, ingênuo, lembre-se que as falácias naturalistas e moralistas nada mais são do que consequências dele e ainda são muito comuns hoje em dia. O oposto do Monismo Ingênuo é o Dualismo Crítico, ou seja, a total separação entre leis morais e leis naturais. A dificuldade em se livrar destas falácias, contudo vem do fato de que existem estágios intermediários entre o Monismo Ingênuo e o Dualismo Crítico. São eles o Naturalismo Biológico, o Naturalismo Psicológico ou Espiritual e o Positivismo Ético ou Jurídico. Mas não convém explicar em detalhes cada um deles.

Um exemplo do Naturalismo Biológico é a seguinte afirmação: “Todos os homens nascem iguais, portanto, todos devem ter os mesmos direitos.” Repare que esse argumento, muito comum entre os teóricos do direito natural, o que inclui os precursores do liberalismo, na verdade é outro exemplo da mesma Falácia Naturalista que tratamos anteriormente. Ainda que os homens sejam naturalmente iguais, devemos nos lembrar de que nem tudo o que é natural é necessariamente bom e que, portanto, não temos obrigação nenhuma de nos conformarmos à natureza. Até porque, a mesma Falácia Naturalista já foi usada para defender exatamente o contrário. Defensores da aristocracia diziam que os homens são naturalmente desiguais e que, portanto, deveriam ser tratados de forma desigual. Aristóteles, por exemplo, dizia que era injusto tratar igualmente os desiguais. Platão, mestre de Aristóteles, era outro aristocrata que compartilhava desta mesma opinião.

O dualismo crítico é o fundamento para uma sociedade aberta, enquanto que seus opostos são os fundamentos falaciosos nos quais se sustentam as sociedades fechadas. A sociedade aberta é aquela que está aberta à mudança, ao progresso e ao aperfeiçoamento. A sociedade fechada é aquela cujas leis são tidas como inquestionáveis ou inalteráveis e que, portanto, são estáticas. Se as leis morais estão escritas na natureza, então elas jamais podem ser mudadas. Só o dualismo crítico permite a mudança e o progresso social gradual.

Historicismo e Mecânica social

Antes de entrarmos com mais detalhes nesse próximo assunto, é importante fazer alguns esclarecimentos sobre o tópico anterior que ajudarão a entender este segundo.

Existem leis morais e existem leis naturais com implicações sociais. Por exemplo, o homem precisa comer, se ele não comer, ele morre. Essa é uma lei natural, mas é uma lei natural que tem implicações econômicas e sociais. Essas leis naturais com implicações sociais, Popper chama de leis sociológicas. É papel das ciências sociais estudar estas leis. As leis de mercado, por exemplo, como a lei da oferta e demanda, são exemplos de leis sociológicas.

O dualismo crítico reconhece que não podemos derivar normas morais de fatos, mas reconhece que podemos e devemos julgar quais meios são mais adequados para se atingir um determinado fim. Por exemplo, se você quer levantar uma pedra muito pesada, a ciência positiva é capaz de dizer que usar uma alavanca é melhor do que tentar levantar com as próprias mãos. É uma regra de como agir, mas é uma regra condicionada a um fim. Os fatos podem te dizer qual é o melhor meio para se atingir um fim, mas nunca quais devem ser os fins.

Então, embora as ciências, e isso inclui as ciências sociais, não sejam capazes de validar regras morais, elas são sim capazes de validar os meios que estamos utilizando para se atingir determinado fim. Por exemplo, se queremos crescimento econômico, as ciências econômicas são capazes de mostrar quais políticas são mais adequadas para isso. Agora, diante de um dilema entre mais crescimento econômico ou mais igualdade social, a ciência é incapaz de dar uma solução.

O Dualismo Crítico então permite o progresso social e a sociedade aberta. O Monismo Ingênuo e seus estados intermediários (o naturalismo biológico, o naturalismo psicológico ou espiritual e o positivismo ético-jurídico) tenta confinar a sociedade na estagnação, gerando sociedades fechadas. Mas quem, em sã consciência, não quer que sua sociedade mude para melhor e que não obtenha progresso? – Aqueles que acreditam que não há mais progresso a ser obtido, que há um fim da história e que, ao se chegar ao fim da história, qualquer mudança será para pior. Estes são os Historicistas.

Todos os autores que Popper critica nesse livro, em seus dois volumes, ou sejam, Platão, Hegel e Marx, são mais ou menos historicistas. Os historicistas acreditam que a ciência é capaz de fazer profecias históricas, saber onde a história vai terminar e para onde ela vai inevitavelmente nos levar. Popper rejeita essa hipótese. Ele concorda que é papel da ciência, estabelecer relações de causa e efeito e isso permite algumas previsões de curto prazo, como por exemplo, conhecendo a lei da gravidade, e vendo alguém se jogar do alto de um prédio, eu posso prever que aquela pessoa vai cair, atraída pelo chão e se esborrachar ao se chocar com ele. A ciência quando muito consegue prever o tempo ou uma pequena crise financeira. Previsões mais ousadas do que estas contudo, estão totalmente fora da capacidade atual da ciência.

Pensadores como Platão e Marx, no entanto, não pensavam desta forma. Eles acreditavam ter descoberto o que o futuro nos reserva. A diferença entre os dois é que Marx coloca o estágio perfeito do desenvolvimento humano no futuro, quando a humanidade atingirá o comunismo e Platão por outro lado, o coloca no passado, nas aristocracias tribais e patriarcais de outrora e que sobreviveram até seus dias em cidades como Esparta, acreditando então que a sociedade tende a uma degeneração. Há, evidentemente, níveis diferentes de fé no historicismo. Platão acreditava que a humanidade rumava para a ruína, mas que esta tendência poderia ser revertida, bastava seguir suas diretrizes ao pé da letra. E uma vez atingido o estado perfeito, nada mais deveria mudar, pois nesse caso, qualquer mudança só poderia ser para pior. A sociedade perfeita para os historicistas é uma sociedade fechada.

O oposto do historicismo é a mecânica social ou tecnologia social. Como eu disse no começo desse tópico, a ciência é incapaz de dizer quais fins devemos buscar enquanto sociedade, mas ela é capaz de nos mostrar os melhores caminhos. A mecânica social nada mais é do que a tentativa de usar as ciências sociais para descobrir os melhores meios para se atingir determinados fins. Quer mais liberdade? – O caminho é esse. Quer mais igualdade? – O caminho é esse outro. Para o historicista, por outro lado, os fins já estão dados, os esforços de toda a sociedade devem se concentrar em atingir esse fim e o papel da ciência é interpretar a vontade da história e os sinais dos tempos.

Mas o historicismo não é falseável evidentemente. Como a história é cheia de altos e baixos, qualquer tendência na direção contrária àquela prevista pelo historicista, será vista apenas como mero percalço no longo caminho que leva ao fim da história.

Novamente aqui, temos um estágio intermediário, agora entre o historicismo radical e a mecânica social. A mecânica social que realmente se baseia na ciência de forma realista, Popper chama de mecânica social gradual. A mecânica social que se aproxima demais do historicismo, é a mecânica social utópica.

O problema das utopias

A diferença entre a Mecânica Social Utópica e a Mecânica Social Gradual é que a primeira tenta usar a ciência para solucionar muitos, quando não todos, os problemas humanos e sociais de uma vez só. No fundo, a mecânica social utópica tem um pouco do historicismo porque acredita na possibilidade de se chegar a uma sociedade perfeita, ou no fim da história. Marx é um exemplo de historicista radical. Ele acreditava que vamos atingir o comunismo, não importa o que aconteça no meio do caminho. Platão já era alguém mais próximo de um tecnologista social utópico, pois acreditava que algumas ações eram necessárias para se mudar o curso natural da história. O que ambos tinham em comum era a crença na possibilidade de uma sociedade perfeita.

Como você pode imaginar, Popper defende mais uma vez que essa arrogante pretensão também está fora das capacidades da ciência. Para Popper, a sociedade aberta e a mecânica social gradual são baseadas em autêntica ciência, pois se comportam tal como a própria ciência. Da mesma forma que a ciência, em especial a de Popper, não acredita em verdades absolutas, que toda verdade deve estar aberta a questionamentos e que isso é o que permite o progresso científico, também a sociedade não pode conhecer o bem absoluto, somente um progresso gradual de eterno aperfeiçoamento.

O objetivo de uma sociedade aberta não é buscar o bem absoluto, mas evitar o mal tanto quanto possível. E nas palavras do próprio Popper: “Toda tentativa de se construir um paraíso na Terra, levará inevitavelmente a um inferno.”

Uma das principais vantagens da mecânica social gradual em comparação com a utópica é dada por Popper: Se um modelo utópico de sociedade sai errado, é necessário jogar todo o seu conjunto fora e começar do zero (isso quando o viés de confirmação dos utópicos não lhes impede de reconhecer que seu modelo perfeito falhou), fazendo com que todo o esforço anterior tenha sido em vão e pior, a sociedade é prejudicada como um todo e em todos os seus aspectos. Quando você tenta uma cura holística para a sociedade e ela falha, a sociedade como um todo permanece doente ou fica ainda mais doente.

Já quando você erra na solução para um problema social específico, isso só afeta as pessoas diretamente envolvidas com aquele problema, não a sociedade inteira, e você não tem que jogar fora todas as conquistas sociais anteriores.

Agora Popper vai mais além: A sociedade aberta não é só uma sociedade que progride, ela é uma sociedade livre. Já a sociedade fechada, não é só estagnada, ela é necessariamente totalitária.

Como o Dualismo Crítico reconhece que a ciência não é capaz de determinar quais fins a sociedade deve buscar como um todo, numa sociedade aberta somos livres para buscar os fins que desejamos ou que nossa consciência individual nos dita. Uma sociedade fechada por outro lado, busca um finalidade última, todos os meios portanto, devem se conformar à busca por este fim, por este objetivo comum. Todos os esforços da sociedade devem se voltar para o mesmo objetivo e desvios não podem ser tolerados. Na sociedade aberta, o estado existe para servir os indivíduos enquanto estes buscam seus próprios fins. Numa sociedade fechada, o estado é um organismo, os indivíduos são meras células deste organismo buscando um fim pré-estabelecido.

Democracia, mudança sem violência e o ditador benevolente

Aqui chegamos em outro ponto importantíssimo do livro e também muito atual. Tem-se dito que os liberais são contrários à democracia, que o liberalismo termina onde começa a democracia, que a decisão individual acaba onde começa a decisão coletiva e que portanto, os liberais devem argumentar contra a democracia, buscando inclusive argumentos aristocráticos contra ela. Popper demonstra que isso é uma enorme bobagem.

Óbvio que a democracia tem seus problemas, evidente que ele nem sempre, ou melhor, quase nunca, elege os melhores representantes, mas aqui vamos retomar uma das principais mensagens que Popper tenta passar: O objetivo de uma sociedade aberta não é buscar o bem supremo, é evitar o mal tanto quanto possível. A democracia tem problemas mas é melhor que sua alternativa, a ditadura.

Uma vez que o estado é necessário, que o governo existe para servir os indivíduos e que a sociedade deve estar aberta ao progresso social constante, será inevitável trocar de governantes de tempos em tempos. A democracia apenas permite que esta troca se dê de forma pacífica e não por meio de guerras civis e revoluções violentas. A democracia exige o exercício da política por meios pacíficos e por isso favorece a razão, enquanto que um governo não democrático só pode ser derrubado com violência, fazendo com que o embate aconteça na forma de combate violento e não de debate racional. As imperfeições da democracia não são resultado da ausência de razão do povo, mas de sua razão imperfeita.

Alguns liberais acreditam que a maioria não deve ter o poder de tirar as liberdades e direitos das pessoas. Eu concordo que, mesmo uma democracia, não pode permitir uma maioria simples de 50% mais um, tenha o poder de rever os direitos mais fundamentais dos indivíduos, mas é importante lembrar que não podemos ter um conhecimento perfeito sobre nada, muito menos sobre o significado da liberdade e seus limites. Nossa compreensão sobre a liberdade e a melhor forma de exercê-la, evoluiu muito com o passar dos séculos e deve continuar evoluindo. Não podemos pegar a nossa atual compreensão da liberdade e transformá-la num dogma estacionário, impossível de ser revisto. Uma sociedade liberal sem democracia, portanto, pode acabar se tornando uma sociedade fechada, uma vez que seria uma sociedade eternamente presa a uma concepção ultrapassada de liberdade.

Outra crítica comum tanto à democracia, quanto à sociedade livre, é que a liberdade às vezes parece contraditória. Uma democracia pode acabar elegendo um ditador, como diversas vezes aconteceu. Uma sociedade de liberdade absoluta é uma sociedade onde uns tiram a liberdade de outros. Mas todas as demais alternativas caem em contradições semelhantes.

Se você diz que quem governa deve ser o povo e que o povo pode escolher ser governado por um tirano, da mesma forma, se você diz que quem deve governar é o mais sábio (como Platão achava) pode acontecer do mais sábio decidir que o povo deve governar. A liberdade e a democracia só são contraditórias se você as toma como bens absolutos e que precisam existir de forma absoluta. Mas uma sociedade aberta, novamente, não busca o bem absoluto, nem a liberdade absoluta, nem a democracia absoluta, ela busca somente evitar o mal, evitar a tirania e evitar a opressão tanto quanto possível.

Os utópicos e historicistas também acabavam caindo, de uma forma ou de outra, na crença ingênua do ditador benevolente. Marx o via encarnado no Partido Comunista e Platão o via na figura do Rei Filósofo.

Popper enumera uma série de argumentos contrários e uma infidade de dificuldades para o ditador benevolente e para a mecânica social utópica.

A primeira dificuldade é fácil de prever: O ditador benevolente pode deixar de ser benevolente. O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, como diria Lord Acton. Outra dessas dificuldades ocorre mesmo quando o ditador possui boas intenções, neste caso, é saber se suas boas intenções estão sendo atingidas, já que um ditador não é muito aberto a queixas e, portanto, não pode saber se está no caminho certo. No caso de um ditador tentando construir uma utopia, essa dificuldade é potencializada.

Outro problema é que a utopia só pode ser colocada em prática no longo prazo, em mais de uma geração de ditadores benevolentes. O problema é que o ideal de uma geração pode não ser o ideal da geração seguinte, assim, a geração seguinte muda de rumo e todo o esforço da geração anterior acaba sendo em vão. Ainda que essa mudança seja pequena, quanto do projeto original pode mudar no decurso de sua realização?

Construção Social não é o mesmo que arbitrariedade

Se você leu até aqui, você ainda deve estar cheio de perguntas sem respostas. Você deve estar se perguntando: Se não podemos derivar máximas morais a partir de fatos, vamos derivá-las de onde então? Sinto muito te decepcionar, mas o livro acaba sem responder esta pergunta. Se isso abre margem para o relativismo moral, ou pior, para o niilismo moral? É uma pergunta pertinente, mas acho que minha resposta é não. O fato de não sabermos essa resposta, não significa que essa resposta não exista. O fato de não sabermos de onde tirar nossos valores morais, não significa que não temos de onde tirar. Podemos achar outra fonte que não sejam os fatos da realidade (que como vimos, não é uma boa fonte).

Popper deixa claro que o fato de que podemos escolher a qual conjunto de regras vamos nos submeter, não significa que nós simplesmente inventamos as regras. Podemos descobrir essas regras de alguma forma. Popper diz que o filósofo grego Protágoras foi um dos primeiros Dualistas Críticos, mas ele acreditava que as regras morais não poderiam ser descobertas sem auxílio divino. Até por isso, o Dualismo Crítico não é incompatível com a religião.

Popper é muito claro ao explicar que, embora a sociedade seja livre para escolher seu próprio conjunto de regras, isso não significa que qualquer conjunto seja tão bom quanto qualquer outro. Pelo contrário, só podemos fazer uma escala de valores, de julgar quais conjuntos de regras são melhores ou piores, porque somos indivíduos livres e racionais.

Isso nos traz a outra questão muito atual: Recentemente, tem-se relativizado muitos valores morais tradicionais sob a desculpa de que são “construções sociais”. Não são leis imutáveis e inquebráveis da natureza, como pensa o Monismo Ingênuo, são meras convenções sociais, acordos feitos entre os indivíduos de uma sociedade. O Dualismo Crítico confirma essa alegação. O problema é que essas alegações quase sempre saem da boca de um pretenso progressista tentando nos convencer a abraçar uma mudança social de forma acrítica, como se esse argumento bastasse para aceitar toda e qualquer mudança que os autoproclamados progressistas ofereçam. A sociedade pode e deve mudar, mas isso não significa que ela deve mudar sempre, em qualquer circunstância e para qualquer direção. O Dualismo Crítico não implica em arbitrariedade. Dizer que não podemos ficar parados é muito diferente de dizer que devemos vagar ao léu.

George Soros deturpou Karl Popper

Chegamos num dilema: Popper é um progressista, por defender uma sociedade que deve estar em constante mudança, buscando o progresso, ou era um conservador, na medida em que defendia mudanças graduais e rejeitava as utopias? A resposta é: Nenhum dos dois. Essa é uma falsa dicotomia, como já expliquei em outro artigo e essa ambiguidade é característica do bom pensador liberal. Qualquer liberal que não pareça progressista e conservador ao mesmo tempo, está no caminho errado.

Diante disso, conclui que qualquer tentativa de interpretar Popper sob uma ótica totalmente conservadora ou totalmente progressista, é falsa e enviesada. George Soros, na minha humilde opinião, interpretou Popper sob uma ótica excessivamente progressista. E isso porque estou sendo generoso em considerar que George Soros realmente age sob alguma influência do pensamento de Popper. Mas para não ser muito repetitivo, deixo aqui como sugestão, este artigo em que analiso o pensamento de George Soros, tomando como base um artigo escrito pelo próprio.


Os argumentos de John Stuart Mill em favor da liberdade de expressão absoluta

Quem foi John Stuart Mill?

Provavelmente apenas outro desses liberais reacionários que procuravam justificar os preconceitos e o elitismo da burguesia. Argumentava em favor da liberdade de expressão apenas para poder destilar seu discurso de ódio impunemente, não é mesmo?

Com certeza não era esse o caso. John Stuart Mill foi um dos pensadores mais progressistas de seu tempo, defendeu uma síntese entre a democracia rousseauniana e o governo constitucional defendido pelos liberais clássicos, defendeu o sufrágio universal, o voto feminino, e junto com sua esposa, Harriet Taylor, foi um dos precursores do feminismo, além de ter sido um proeminente abolicionista.

Apesar de ter defendido o liberalismo econômico, a teoria econômica de Mill fez uma defesa prévia de intervenções pontuais do estado na economia, dando origem a0 liberalismo moderado. Por conta disso, John Stuart Mill foi chamado de socialista por outros liberais de seu tempo, até que se irritou com tudo aquilo e acabou se considerando socialista mesmo no final da vida, embora jamais tenha revisado ou demonstrado qualquer arrependimento por sua teoria econômica liberal.

Os argumentos

Todos os trechos citados aqui foram tirados do Ensaio Sobre a Liberdade, que dedica quase metade de suas páginas para defender a Liberdade de Expressão. Primeiro devemos começar pontuando que Liberdade de Expressão para John Stuart Mill significa “Liberdade Absoluta de Opinião”. No Capítulo I do seu Ensaio, Mill deixa claro:

“Tal esfera é a esfera adequada da liberdade humana. Ela abrange primeiro, o domínio íntimo da consciência, exigindo liberdade de consciência no mais compreensivo sentido, liberdade de pensar, e de sentir, liberdade absoluta de opinião e de sentimento sobre quaisquer assuntos, práticos, ou especulativos, científicos, morais ou teológicos.”

em outro trecho:

“Nenhuma sociedade é livre, qualquer que seja a sua forma.de governo, se nela não se respeitam, em geral, essas liberdades. E nenhuma sociedade é completamente livre se nela essas liberdades não forem absolutas e sem reservas.”

É importante deixar claro que os argumentos a seguir, defendem a Liberdade de Expressão absoluta, e que servem para demolir definitivamente slogans bobos como o de que “liberdade de expressão não é liberdade de opressão” e outras tentativas de abrir exceções ao direito de expressar opiniões livremente. Explicaremos o argumento de Mill em favor da liberdade absoluta mais adiante.

1. Mesmo uma opinião equivocada pode nos ajudar a entender a verdade.

Para Mill, tanto faz se você sufoca uma opinião defendida por muitos ou por um só indivíduo em contradição com todos os demais, ao censurar uma opinião, você não está fazendo apenas um mal contra aquele indivíduo, mas contra toda a humanidade, privando-a do conhecimento daquela opinião. E um dos argumentos de Mill contra a censura é este:

“Se a opinião é certa, aquele foi privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeu o que constitui um bem de quase tanto valor — a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzidas pela sua colisão com o erro.”

Ou seja, não devemos censurar uma opinião, ainda que ela esteja errada, pois o contraste entre a verdade e a opinião errada nos dá uma compreensão melhor da verdade. Uma das formas mais didáticas de se explicar uma verdade é contrapondo-a a uma ideia contrária e falsa.

2. Falibilidade

O segundo argumento de Mill, em suas próprias palavras é o de que

“(…) a opinião que se tenta suprimir por meio da autoridade talvez seja verdadeira. Os que desejam suprimi-la negam, sem dúvida, a sua verdade, mas eles não são infalíveis. Não têm autoridade para decidir a questão por toda a humanidade, nem para excluir os outros das instâncias do julgamento. Negar ouvido a uma opinião porque se esteja certo de que é falsa, é presumir que a própria certeza seja o mesmo que certeza absoluta. Impor silêncio a uma discussão é sempre arrogar-se infalibilidade.”

Mais adiante, Mill aprofunda essa argumentação, explicando que a liberdade de expressão é uma precaução contra a nossa falibilidade.

“Pois que, embora cada um saiba bem, no seu íntimo, que é falível, poucos acham necessário tomar quaisquer precauções contra a própria falibilidade.”

Mill ainda atribui a arrogância dos que se julgam infalíveis à pura e simples estreiteza de visão e ignorância quanto à diversidade existente no mundo e na história.

“(…) àquele para quem o mundo significa algo tão compreensivo como o seu país ou a sua época. E a sua fé na autoridade coletiva não se abala, em absoluto, por vir a saber que outras épocas, países, seitas, classes e partidos pensaram, e ainda hoje pensam, precisamente, o contrário. Ele lança sobre o seu mundo a responsabilidade pela justeza de suas opiniões ante os outros mundos divergentes. E jamais o perturba que um mero acidente tenha decidido qual desses numerosos mundos seja o objeto da sua confiança. Como não o perturba que as mesmas causas que o fizeram anglicano em Londres, o poderiam ter feito budista ou confucionista em Pequim. Contudo, isso é tão evidente por si mesmo quanto é certo que as épocas não são mais infalíveis que os indivíduos – cada época tendo adotado muitas opiniões que as épocas seguintes consideraram não só falsas como ainda absurdas; e que muitas opiniões, agora gerais, serão rejeitadas no futuro, como muitas, outrora gerais, o foram no presente.”

3. Uma ideia verdadeira não teme o debate livre

Mas esse ponto de vista não parece um pouco relativista? Se temos convicção de algo, não devemos lutar por aquilo que acreditamos ser a verdade? Alguns podem até admitir que devemos ter cuidado ao formular nossas opiniões, mas uma vez alcançado um certo grau de certeza, não teríamos o dever moral de cuidar para que ela seja aceita por todos? Não seria até covardia, se abster de impor essa verdade? A isso John Stuart Mill responde que não:

“(…) não se trata da mesma presunção, mas de outra muito mais ampla. Existe a maior diferença entre presumir a verdade de uma opinião que não foi refutada apesar de existirem todas as oportunidades para contestá-la, e presumir a sua verdade com o propósito de não permitir refutação. A completa liberdade de contestar e refutar a nossa opinião, é o que verdadeiramente nos justifica de presumir a sua verdade para os propósitos práticos, e só nesses termos pode o homem, com as faculdades que tem, possuir uma segurança racional de estar certo.”

Resumindo, presumir a verdade de uma opinião porque ela ainda não foi refutada, não justifica impedir sua refutação futura. Proibir as tentativas de refutar uma opinião vigente, não é uma demonstração de convicção e segurança, pelo contrário, é uma demonstração de medo de que ela seja refutada.

4. Só é Liberdade de Expressão se for absoluta

Mas por que a Liberdade de Expressão deve ser absoluta? Tudo bem admitir opiniões divergentes, mas não deveríamos fazer algo para impedir o discurso de ódio, por exemplo? A resposta de John Stuart Mill para os “limites” da liberdade de expressão é a seguinte:

“É estranho que os homens admitissem a validade dos argumentos a favor da livre discussão, mas objetassem que eles são “levados ao extremo”, não vendo que, se as razões não são boas num caso extremo, não são boas em caso nenhum. Estranho, ainda, imaginassem que não se arrogam infalibilidade quando reconhecem que deve haver livre discussão sobre todos os assuntos que se prestem a dúvidas, mas não sobre algum princípio ou doutrina especial que seja suficientemente certa, isto é, a respeito da qual eles estejam certos de que é certa. Chamar de certa alguma proposição enquanto haja alguém que, se fosse permitido, negaria, mas a quem tal não se permite, é presumir que nós, e os que conosco concordam, somos juízes da certeza, e juízes que dispensam a audiência da outra parte.”

Explicando o que ele disse em outras palavras, usando o exemplo da objeção ao discurso de ódio, o problema é: Quem define o que é discurso de ódio? Dizer que tipo de discurso deve ser tolerado e qual não deve, já é em si, uma opinião que merece ser debatida livremente. Portanto, as mesmas razões que justificam a Liberdade de Expressão, justificam a Liberdade de Expressão absoluta. Na verdade, não é Liberdade de Expressão se não for absoluta.

5. Quem define quais ideias são perigosas?

Outra falácia comum em favor da censura é aquela que se diz preocupada com a ordem e a coesão social e não com a verdade. Alega-se que certas opiniões devem ser censuradas, não necessariamente porque são falsas, mas porque são perigosas e podem levar ao caos. Quanto a isso, Mill responde:

“Aqueles, porém, que se satisfazem com isso, não percebem que a presunção de infalibilidade apenas se deslocou de um ponto para outro. A utilidade de uma opinião é ela própria matéria de opinião: tão disputável, tão aberta a debate, exigindo tanto debate, como a própria opinião. Falta um juiz infalível de opiniões para decidir se a opinião é nociva da mesma forma que para decidir se é falsa (…)”

6. Se uma opinião nunca é contestada, seus fundamentos se enfraquecem

Não é possível impedir, absolutamente, que uma nova opinião seja introduzida na sociedade. Sem liberdade de expressão, porém, as opiniões se cristalizam e são transmitidas na forma de meros preconceitos, repetidos e aceitos sem questionamento, até o ponto em que não se conhece mais os argumentos racionais por trás delas. É aí que, uma vez introduzida uma nova opinião, a opinião antiga, mesmo correta, será rapidamente substituída. Mill explica:

“(…) ainda que a opinião aceita não seja apenas verdadeira, mas a verdade toda, só não será assimilada como um preconceito, com pouca compreensão ou pouco sentimento das suas bases racionais, pela maior parte dos que a adotam, se aceitar ser, e efetivamente for, vigorosa e ardentemente contestada.

E não somente isso, mas, em quarto lugar, se tal não se der, o significado mesmo da doutrina estará em perigo de se perder, de se debilitar, de se privar do seu efeito vital sobre o caráter e a conduta: O dogma se tornará uma mera profissão formal, ineficaz para o bem, mas a estorvar o terreno e a impedir o surgimento de qualquer convicção efetiva e profunda, vinda da razão ou da experiência pessoal.”

7. Dialética

Meias verdades (ou meias falsidades) são muito comuns, isso para não dizer que são a regra geral. Uma opinião equivocada pode conter partes da verdade, e uma opinião correta amplamente aceita, pode conter apenas partes da verdade completa. O confronto de ideias, a velha dialética socrática, quando tese e antítese dão origem a uma síntese, é a melhor forma de se chegar a uma compreensão mais completa da verdade. Nas palavras de Mill:

“Existe, porém, um caso mais comum: ao invés de uma das doutrinas em conflito ser verdadeira e a outra falsa, partilham as duas entre si a verdade, e a opinião não conformista é necessitada para completar a verdade de que a doutrina aceita incorpora apenas parte. As opiniões populares, sobre assuntos não evidentes aos sentidos, são muitas vezes verdadeiras, mas raras vezes, ou nunca, completamente verdadeiras. São uma parte da verdade — às vezes uma parte maior, às vezes menor, mas sempre exagerada, adulterada, e desligada das verdades pelas quais se deve acompanhar e limitar. As opiniões heréticas, de outro lado, são, geralmente, algumas dessas verdades suprimidas ou negligenciadas, que quebram as cadeias que as prendem (…)”

8. Outros argumentos

Em outro ponto, Mill cita como exemplos de vítimas de perseguição ideológica, duas figuras muito importantes para a cultura ocidental: Sócrates e Jesus Cristo, ambos vítimas fatais da falta de liberdade de expressão. Mill argumenta que as pessoas que mataram Cristo não são piores seres humanos do que aqueles que hoje pedem alguma forma de censura, estes teriam agido exatamente da mesma forma se tivessem vivido naquela ocasião.

Mill também alerta que, ainda que não exista censura legalmente institucionalizada, o estigma social que carrega os que possuem uma opinião impopular, pode ser quase tão ruim quanto. Excluir ou discriminar socialmente alguém por conta de suas opiniões inibe a participação das pessoas no debate público e isso empobrece, portanto, o debate, faz com que as pessoas tentem amenizar e moderar suas próprias posições e em muitos casos, que tentem até trair suas próprias consciências apenas para se sentirem melhor perante a sociedade. O que sobra então é o conformismo e aqueles capazes de especular de forma livre, audaz e criativa, acabam escolhendo o silêncio.